terça-feira, 28 de julho de 2009

O palhaço triste

Meio-dia. Os carros correm no asfalto em brasa. O sinal fecha. Alguns ignoram a luz vermelha, mas a maioria diminui a velocidade até parar. Os pedestres atravessam indiferentes. Os motoristas aguardam indiferentes. Da calçada eu sorrio para uma mulher muito atraente do outro lado da rua. Ela vira o rosto, indiferente. Todos parecem tão centrados em si, indiferentes, que eu me sinto um idiota pensando nos outros. Serei diferente? Não, não sou. Meu rosto é comum, meus pensamentos são comuns, meu trabalho é comum. Diferente, mesmo, é a vida desse palhaço à minha frente. Assim que os carros param, ele entra em ação: com o rosto maquiado, a roupa toda branca e preta, ele brinca com malabares. As peças descrevem no ar algumas piruetas, mas sempre no mesmo ciclo, o que faz os outros pensaram, erradamente, que aquilo não é nada demais. A simplicidade do ciclo faz as pessoas pensarem: "Com prática eu também faço isso". Mas eu garanto: eu não faço, e muitas das pessoas que supõe essa facilidade também não fariam o que ele faz. Sabe por quê? Retornemos ao início desse texto: é meio-dia. Um sol intenso nos obriga a andar cabisbaixos. Os pedestres estão com pressa. Os motoristas também estão com pressa. E o palhaço só tem alguns segundos para conquistar pessoas nitidamente indiferentes, e convencê-las da qualidade de seu trabalho. Não basta prática para ser um palhaço malabarista. É preciso muito mais. A começar por um coração forte, afinal, é difícil sorrir para pessoas que estão loucas para soltar em você todas as amarguras alimentadas até ali. Dar sorrisos por obrigação, coisa muito difícil. Mas esse palhaço que está diante de mim é muito bom. Parece feliz, acredita sinceramente que está feliz. No tempo certo, cronometrado pela mente, ele encerra a pequena apresentação e vai até o respeitável e indiferente público. Os carros mudam a cada apresentação, mais seus sentidos captam sempre as mesmas coisas: Vidros fechados, fumaças de escape, o som de moedinhas insignificantes caindo em sua mão, uma gota de suor descendo pelas suas costas, um “muito obrigado, senhor”, e como resposta, uma arrancada de pneus. Ninguém ri; ninguém aplaude; ninguém fala nada: ou dá uns trocados, ou pede desculpas, ou nem isso, simplesmente ignora completamente esse palhaço preto e branco.Os carros passam, os pedestres passam. O sinal abre e fecha a toda hora. Novos carros, novas pessoas: no fundo, são sempre as mesmas. E assim como os malabares descrevem sempre o mesmo ciclo, o malabarista também representa sempre a mesma cena, participa do mesmo ciclo. Por mais alegre que seja, o palhaço não consegue esconder a tristeza de sua função. Sorrir, sorrir. Sorrir para olhos indiferentes. Já é uma hora da tarde. Depois de muitas apresentações, o palhaço triste acumula certa quantia, que não consigo contabilizar daqui, mas sei que não é muito. Ele pára pra descansar na calçada oposta a onde eu me encontro. Está bem suado, mas a maquiagem é bem pesada e resiste. Por um momento, ele volve os olhos para o outro lado da rua e encontra os meus. Ou o palhaço tem os olhos tristes, ou então reflete em seus olhos a tristeza que esse cronista carrega nos seus. Talvez sejamos dois olhares tristes. Talvez. Reparo que ele se encontra no mesmo lugar que aquela bela mulher estava. Ela me ignorou com indiferença. Enquanto nossos olhos se refletem, eu arrisco um sorriso para o palhaço, como fiz para aquela mulher.Aguardo. Agora ele não está trabalhando, então verei se seu riso é, naturalmente, triste ou alegre. Vejo que seu rosto se contrai. Ele irá sorrir. Enfim, a revelação. O sinal, até então fechado, abre. Carros altos impedem que eu veja sua resposta. Ônibus e caminhões, carros em alta velocidade. Não diviso o jovem palhaço. O sinal fica amarelo. Os carros se acalmam. E os motoristas, estacam com suas indiferenças amarelas. O palhaço já saiu da calçada. Ágil, já está sobre a faixa de pedestres, brincando com seus malabares. Espero, como uma criança que vai ao circo pela primeira vez, o olhar do palhaço. Nada. Segue em sua loucura, na sua alegria demasiado racional para ser sincera. Palhaço triste e mentiroso. Criança que sou, saio desapontado. Vou caminhado pelas calçadas, com o sol ainda quente sob minha cabeça. Sem olhar pra trás, vou pensando no que teria acontecido durante aquele espaço de tempo. Aquela lacuna entre poucos segundos. O que haveria entre o meu sorriso e o esverdear do semáforo?Tristeza ou alegria? Minha intuição apontava a tristeza. Mas eu não a vi. Não podia afirmar.Continuava caminhando, e aos poucos de curiosa criança passei para o adulto desencantado que sou.--- Não, vou afirmar. Era de felicidade. Tem que ser felicidade, não pode haver palhaço triste.Dito isso para mim mesmo, parei. Estava diante de outro semáforo. A luz estava vermelha. Atravessei a rua com outros pedestres. Decidi esquecer o palhaço e juntei-me à massa dos indiferentes.

Eduardo Silveira

segunda-feira, 27 de julho de 2009

As pessoas só pensam naquilo

Cinéfilos diagnosticados convergem as córneas à projeção da imagem nos quase cinqüenta metros quadrados horizontalmente distribuídos. Perfilados lado a lado nas mais de trezentas poltronas, seguram nas mãos os tradicionais pacotes de pipoca e copos de refrigerante. Recomendações comuns e corriqueiras dadas, apagam-se as luzes de segurança e a sessão inicia. Vício dessa vez alimentado que se acentua quando se ouvem notícias de novas produções cinematográficas em cartaz.
Sessão esgotada como todas as outras cinco ao longo do dia e os promotores de evento do shopping põem-se a contabilizar a arrecadação recorde. São mais de vinte e cinco mil reais de viciados assistindo à série “Arquivo-X”, protagonizada por David Duchonvy e aprovada pelo público e pela crítica.
Onde há justificativa plausível para o sucesso da série? O ator norte-americano interpreta um sexólatra que pensa em pornografia vinte e quatro horas por dia. A sexolatria é uma patologia de viciados compulsivos por sexo. Uma legião de viciados. Um distúrbio psiquiátrico que causa dependência excessiva de praticar relações sexuais. A abstinência causa entre outras doenças, a depressão. Não bastasse o papel nas telas de cinema, os cinéfilos souberam que Duchovny de quarenta e oito anos apenas interpreta um dilema antigo, de quase onze anos, na sua vida. Voluntariamente ou não, esteve mais de mês na clínica de reabilitação “The Meadows” no Arizona(EUA) pressionado pela esposa, a atriz Tea Leoni que ameaçou recorrer ao divórcio caso não procurasse ajuda para conter esses estímulos sexuais.
Há uma justificativa. Identificam-se com o personagem. Sim, porque noventa e nove por cento dos pobres terráqueos vivem as suas vinte e quatro horas do dia nas mesmas condições do ator. É óbvio, e talvez com intensidade ainda maior. Ou você leitor pretende julgar minhas palavras como calúnia ou heresia? Heresia porque sexolatria é pecado.
O quotidiano não permite porque se pudessem homens e mulheres, ou homens e homens, ou mulheres e mulheres, sejam quais forem os formatos poriam as roupas abaixo vivenciando eternos orgasmos múltiplos ao ponto da exaustão física, da troca, entrega e doação mútuas em instantes de delírio numa explosão de calor, de prazer e do líquido pastoso e esbranquiçado. Um êxtase sem escrúpulos até que ambos os corpos, ou mais que apenas ambos, sejam consumidos pelo odor, sem cor, sem forma, sem nada, aliás, literalmente sem nada e que isso evapore como se não houvesse ocorrido coisa alguma propiciando o reinício num ritmo constante e eterno.
A afetividade entre os terráqueos apenas existe entre pais e filhos, e padrinhos e afilhados, porque as demais relações apenas coexistem para que pratiquem o instinto selvagem herdado de nossos ancestrais, instaurando a cultura da pornografia desenfreada, patrocinada e incentivada pela publicidade nos mais diversos veículos de comunicação de massa que atendem aos interesses mercadológicos sem ética e estética e promove a pornografia no patamar de terceiro negócio mais lucrativo do mundo.
Coexiste como pupilos da serotonina, dopamina e noradrenalina, substâncias neurotransmissoras do cérebro que conduzem uma célula nervosa ou neurônio para outra e geram um sentimento inigualável e inenarrável de satisfação.
Mesmo numa poltrona confortável, meditando com meus próprios parafusos, degustando aquela pipoca entre os dentes e aquelas cócegas do gás do refrigerante, impunha com os choques dos meus neurônios uma revolta descomunal contra o sexo. Toda anedota que ouço envolve sexo. Como se não houvesse piadas engraçadas sem que o citasse. Todo garoto de quinze anos acessa sites de sexo. E culpa os malditos hormônios pelos incontroláveis desejos. Todo adulto que se preze põe na ponta do lápis a tabelinha que o indica quando praticar sexo. E espera ansiosamente por esse dia. As pessoas só pensam nisso. É uma mulher que passa e o homem, ou outra mulher, deseja tê-la na cama. É um homem que passa e a mulher, ou outro homem, deseja tê-lo na cama. O sexo não é como lavar as mãos, uma prática diária. Sexo é como reveillon, uma prática anual.
Que exista menos adultério, menos casamentos prejudicados e menos relações jogadas ao vento por causa de um vício prazeroso de pouco mais de cinco segundos. Sem moralismo farisaico e impiedoso conselho antissatânico lanço sete pacotes de pipoca e cinco copos de refrigerante que escondi abaixo da poltrona sobre a platéia, corro a mais de cem por hora do shopping e sou algemado pelos seguranças. Os civis punham meus pobres cinqüenta e seis quilos atrás das grades como mártir da sociedade moderna ou deslocam os mesmos quilos à sexta sepultura do cemitério municipal junto de outros restos mortais de insanos como eu.

Wellington Nardes

sábado, 25 de julho de 2009

Devaneio

Um intenso manto escuro brinca com as estrelas. Esconde-esconde. Sentado na cega areia da praia, procuro pela lua, mas ela simplesmente ignora-me, assim como toda a sociedade individualista.
Aos poucos a brisa – fria e fraca toca a minha face – pálida e rústica. Arrepio. A leve garoa, acalantada pelas ondas do mar, vêem ao meu encontro. Calafrio.
O balanço das ondas – forte, constante – exala meus ouvidos. Provocam suaves pensamentos do mundo. Os dias, as noites. As estórias. No entanto... Nada me dizem. Tudo é congruente. Rotineiro.
Fecho meus olhos, para sentir o vento, mas a prontidão das ondas dizem-me para esquecer. O que? Não sei! Apenas esquecer...
O sopro do oásis e a anosa garoa ficam mais fortes. Suportá-las, impossível.
Levanto-me impulsionando os meus pés, sem pressa, sem direção. E meu corpo navega indo onde meus passos se perdem.
O mar numa melancólica sinfonia despede-se com um adeus. E leva consigo meus pensamentos, assim como os ventos apagam as pegadas que eu deixara na areia.
Saudade.
A rua estreita, as casas mórbidas, os moradores recolhidos - o frio passara por ali.
Desvio-me do normal.
A magia dos contos de fadas, dos livros que papai lera nas noites de insônia, não se compara com aquela realidade.
Homens procurando no frio a ardência da fome, nos jornais – velhos e sujos - o aconchego dos lares. Mulheres, que do pecado alimentam seus filhos. Crianças, que procuram nos rótulos a satisfação de sua sobrevivência. E jovens que pesquisam suas respostas, nas drogas. Tudo amedronta-me, perturba-me.Explodindo as realidades.
Confuso, entrego-me ao desespero e alucinação de minha mente. Onde estou? Que lugar é este? Quem são eles? O interrogatório acusa-me de uma vida consolidada em fantasias demasiadas do consumo, prazer e desejo humano.
A covardia – conseqüente do inquérito – toma conta dos meus passos - antes cautelosos-, e involuntariamente numa disparada de segundo passo ligeiramente entre ladrilhos de pedra, reflexos e poças de água...
Os pingos decorrentes da chuva marcam minha pele – flácida e sensível –, misturando-se com as gotas que brotam do meu rosto. Dos rostos daquelas pessoas. Pessoas? Não! Criaturas? Talvez.
Corro, corro, corro...
E em casa, a exatidão dos meus pensamentos quer exortar o que eu observara, ou serei obrigado a enterrar-me na abstinência do sepulcro medíocre da humanidade.
Robson Rodrigo dos Passos