terça-feira, 18 de agosto de 2009

Eu, Truman e a Teoria Crítica

Sete da manhã. Punha-me debruçado sobre a soleira da janela do sexagésimo sexto andar da torre de Potosí (Bolívia), a cidade mais alta do mundo. Nas mãos seguro uma lupa que redireciono para todas as casas, apartamentos e residências dos conjuntos habitacionais da terra. Como se houvessem gigantescas máquinas repetidoras, as pessoas parecem submetidas às mesmas atitudes. Acordam, lavam o rosto, urinam, banham-se, vestem-se (todos com roupas muitíssimo parecidas), põem-se à mesa e simultaneamente assistem TV, levantam-se, pegam a mala, vão ao ponto de ônibus, enfrentam fila e vão ao trabalho, trabalham e voltam ao ponto de ônibus, vão para casa, banham-se, assistem a novela das oito e dormem. No outro dia acordam, lavam o rosto, urinam, banham-se, vestem-se (todos com roupas muitíssimo parecidas), põem-se à mesa e...
Tais cenas xerocadas cotidianamente dão-me uma revolta descomunal ao ponto de gerar uma vontade de em poucos segundos confirmar numa contagem decrescente o número de andares da torre. Por que sou escravo da indústria cultural? Por que sou submisso aos meios de comunicação de massa? Por que permito uma manipulação desmedida? Por que permito uma persuasão sem escrúpulos? Por que permito uma influência descabida, mentirosa, vulgar e obrigatória? Manipulação, persuasão e influência tão intensas sobre mim que até parece que a sensação de liberdade pelo vento impetuoso e ameno que espalham meus cabelos no alto da torre é ocultada pela sensação de prisão numa cela suja com grades maiores que uma jaula de leão vendo o sol nascer quadrado pela janela. E metaforicamente a janela é TV que parece ser um cabresto para meus raciocínios tornando-me protagonista do quadro Abaporu de Tarsila do Amaral ao filosofar analiticamente sobre minha forma de consumo dos produtos oferecidos pelos meios de comunicação de massa.
E será que ao apreciar o cenário no alto dos duzentos metros da torre posso acreditar mesmo que, como Truman, não sou protagonista de um reality show? Será que alguém fosse mesmo capaz de construir um cenário desse tamanho? Logo saio pelas ruas de Potosí, passo por Nova Yorque, atravesso o atlântico, chego à Moscou com a esperança de descobrir o fim, se é que existe, de fato, Nova Iorque, o oceano e Moscou. O filme “O show de Truman” protagonizado por Jim Carrey conta a história de um vendedor de seguros, que vive desde o nascimento vigiado por câmeras de televisão, vinte e quatro horas por dia. Um reality show, mesmo, onde Truman é mercadoria e vítima de um sistema impostor e dominador, que procura atender seus interesses, impondo um modelo social permeado por uma falsa e ilusória ideologia. O programa é criação da indústria cultural, produzido do alto pelas instituições sociais dominantes que determinam o processo de consumo, instaurando na audiência uma reação automática e irreflexiva perante àquilo a ser consumido. De forma acrítica os telespectadores consomem os padrões de consumo, tendo como objetivos principais a venda de mercadorias e o lucro acima de tudo, não importando a qualidade do produto, nem se estão sendo dignos com a humanidade e a sociedade. Não importa como Truman se sinta, ele faz parte desse modelo forçado e assim deverá permanecer. Eis aqui um ponto fundamental do filme, mostrando algumas das fragilidades da teoria crítica.
As ilhas Fiji estão para Truman como a sociedade crítica livre da dominação está para a Teoria Crítica. Para teoria crítica a academia não desenvolve integrantes de uma sociedade autônoma, independente e livre das imposições da indústria cultural de massa ao estudar disciplinas com muita especificidade porque dessa maneira não há uma compreensão global da sociedade e as pessoas são submetidas apenas à manutenção das ordens sociais que estruturam a sociedade desde as praticas culturais adquiridas ao longo dos séculos ao sistema financeiro eminente. E assim como quase toda teoria é uma utopia continuo enquanto teórico procurando as Ilhas Fiji da Teoria Critica. E como não tenho coragem de desafiar a gravidade do alto dos sessenta e seis andares da torre espatifando meus pobres quarenta e nove quilos na avenida central jogo pela janela as vinte e nove polegadas daquela caixa preta com um V acima como gesto concreto da minha revolta.
Wellington Nardes

4 comentários:

Eduardo Silveira disse...

Lendo o seu texto, não há como dizer "sou livre". Somos manipulados? Sim. O pior disso, é que somos manipulados por nós mesmos, dentro do próprio jogo que criamos. A nossa sociedade, ou (limitando um pouco) a sociedade ocidental é mantida sim através de mecanismos de manipulação. Trata-se de um ciclo vicioso: aqueles que deixam manipular são extamente aqueles que estão à margem, em busca de um papel social. E tais pessoa, as manipuladas, nunca deixarão de existir. E se deixarem, acaba esse modelo de sociedade. Seria interessante, né, começar do zero? utopia, utopia...

Bem, e quanto aos meios de comunicação.. são produtos a serviço desse modelo que vc descreveu, entretanto (vc sabe, eu sou bem mais "bonzinho") não acho que a culpa seja da TV. Inclusive, recentemente escrevi um texto parabenizando a TV por seu dia, e lá no texto digo algo nesse sentido. . É um texto pequeno, despretensioso, mas eu recomendo a leitura. Está no palavrasmortas.blogspot.com

Bem, era isso.
Essa polêmica sobre o controle que os meios de produção estabelecem sobre boa parte da população é uma discussão e tanto!

Abraço Wellington!

Eduardo Silveira disse...

Ah, véééiaaa

Preciso arrumar uma coisa.

Retificando as últimas linhas do comentário:

Essa polêmica sobre o controle que os meios de COMUNICAÇÃO estabelecem sobre boa parte da população é uma discussão e tanto!

aff, meios de produção...
haha, muito socialismo na cabeça! :P

Wellington Nardes disse...

Os meios de comunicação de massa exercem muito mais influência em nossas vidas do que nós mesmos imaginamos. É isso que me atrai ao jornalismo!

Eduardo Silveira disse...

Sim! Comcerveja!